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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Cabra Macho

- Seguinte, você vai ter que carregar essa tora de madeira até o alto daquele morro sozinho e nas costas.
- Ok, aguento.
- Chegando lá, uma galera vai te espancar, xingar, humilhar até você cair.
- Ta bom...
- Depois esse pessoal te debruça na madeira, te amarra, te chicoteia até sangrar.
- Vamos nessa!
- Tu é macho! Depois os cara vão empalar você pelo cú, pra você secar no sol do meio dia.
- Vou, pô!
- Vão te dar tiro de 12, estragar o velório...
- Topo!
- Vão picar você começando pelo pé. Olha...
- Bora!
- Depois vão fazer microondas...
- Bora fio, aguento tudo... bora, bora!
- Bora mesmo, cabra? Vão fazer cocega no teu sovaco, cantar Arrocha na sua orelha...
- Bora, carai!!!
- Sua mulher pediu pra ter uma conversa com você lá em cima.
- É... se ela puder esperar eu descer, melhor...

por Coronel Malaquias

sexta-feira, 13 de março de 2015

Trato feito

Adorado pela igreja e no terceiro mandato em Brasília, Pastor Ferrúcio tinha a vida que pediu a Deus. Ou ao diabo. A fachada de político e religioso escondia uma vida desregrada. Prostitutas de luxo, carrões, vínculos com personagens obscuros. 

A Polícia Federal não estava para brincadeira. A TV noticiava os desdobramentos da Operação Bahamas. Lavagem de dinheiro, propina, evasão de divisas. Ferrúcio tinha parte no rolo.

De olho na repercussão, o partido o abandonara e a igreja pressionava. O advogado avisou: “A coisa tá feia. Qualquer coisa, a gente negocia uma delação premiada”. O deputado se desesperava. Tarde da noite o telefone tocou. Número restrito. Do outro lado, uma voz indecifrável deu a letra: Quem pode resolver seu problema está no endereço assim e assado, esteja lá assim que anoitecer. As frases eram embaladas por um reverberar de cavernas. O interlocutor estava muito longe dali.

Um boteco de madeira, construção precária no meio do Sol Nascente. Foi sozinho e encontrou um moreno espichado. Ferrúcio recusou um gole de cerveja, cachaça ou guaraná. Queria ir direto ao assunto. Acompanhou o moreno até um porão imenso e iluminado a velas. O acordo era simples: Ferrúcio se livrava da investigação em troca de sua alma. Mas antes, avisou o canhoto, ele teria de saber como e quando iria morrer. Uma galinha surgida não se sabe de onde foi degolada e, na poça formada pelo sangue, Ferrúcio viu o futuro. Eu nem estou tão velho assim, murmurou para ninguém, pois o moreno já havia se esfumado. Naquela noite, dormiu com um travo metálico na alma, um sopro gelado no fundo do peito.

Os dias se passaram e a situação continuava calamitosa. Um doleiro caiu no grampo da Federal citando o nome de Ferrúcio. É questão de tempo, lamentou o advogado. Somado ao desespero vinha o ódio por ter caído em tacanho golpe de feitiçaria. Saiu caminhar para aliviar os pensamentos, quando foi colhido por uma BMW preta em altíssima velocidade. Nem mesmo a morte fora parecida com a vislumbrada no sangue de galinha. Ferrúcio partiu exatamente dois dias antes da divulgação da lista dos investigados. Seu nome não fazia parte da relação.

Enquanto populares se aglomeravam em volta do corpo, já a quilômetros dali um moreno canhoto dirigia tranquilamente seu sedã alemão. Político, só com pagamento adiantado.


Por Guinea Pig

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Apenas um Membro

Depois de um retiro isolado, Albert teve uma revelação. Um ser de luz lhe disse que ele era o escolhido para levar a paz ao seu próprio coração. Criou assim uma fé que não tinha ninguém mais que a si, Igreja da Solidão.

A ele pregava, a ele abençoava, a ele tirava maldição cobrando 10% ou mais do quinhão que ganhava. Vivia feliz consigo mesmo, onde fosse enviado, pregando a si mesmo que ele era o melhor líder religioso que tinha encontrado.

Mas se sabe, a carne é fraca, um dia ele caiu no pecado. Segundo seus preceitos foi condenado por ter com um membro de outra religião no caixa do supermercado. Tentou justificar argumentando que o outro era prosélito, em vão. A desculpa incoerente piorou a situação: "caberá dois na igreja da solidão?". O ato que em branco não passaria, pois fora da sua seita, gente boa não haveria, levou Albert a auto-expulsão. Pagando a pena imposta pela sua crendice, se revoltou achando aquilo tolice. Foi certo buscar em outras casas o pão que a sua lhe negou.

Mesmo em meio a multidão não se encontrou. Rodeado de pessoas pensava "sozinho ainda estou". Num vazio que nunca de fato encerrou, essa busca que se manifesta, vê que não tem saída, pede perdão e confessa: "Filho pródigo eu, aqui estou!". A ele mesmo aceitou como pecador arrependido e subjugado, nunca mais teria com o mundo falido de que tinha se apartado. A Igreja da Solidão prosperou, com a lei maior que Albert determinou: "apenas um membro", pastor e ovelha ao mesmo tempo, e com choro e Amém o culto se encerrou.

por Coronel Malaquias

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Coração de Jacaré


Sexta-feira 13 de Carnaval. Josmedir abusava da bebida. Cachaça, caipirinha, cerveja, rabo de galo, maria-mole. Roubaram o coração da minha sogra, botaram coração de jacarééééé..., animado pelas marchinhas, abraçava o mulherio e alguns marmanjos. Josmedir adorava a folia.

Lá pelas tantas, trombou uma moça loura, novinha. Um tesão. O papo colou. Josmedir bebeu mais um pouco. A coisa esquentou. Aqui não, tem muita gente, protestou a menina. Pegou-o pela mão e o levou para longe dali. Passaram o asfalto, entraram na mata e Josmedir viu um cemitério. Um cemitério que nunca pensou ter existido por ali. Vem, convidou a mocinha, deitada numa lápide, oferecendo-se toda. Tem que ser aqui, explicou.

Colocar-se em pé diante de tamanha intoxicação etílica foi difícil, mas perfeitamente possível diante de algumas tentativas e o auxílio prestimoso da lourinha. Saíram dali tão logo acabaram. Voltaram à festa e se perderam entre os foliões. Josmedir acordou no dia seguinte, em sua cama, com vagas lembranças do ocorrido.

Procurou-a por toda parte. No sábado, vislumbrou a cabeleira loura entre um bloco de homens-cone. Correu para lá, mas não a alcançou. No domingo, teve a certeza de que a ouvira chamar por ele. Passou a noite sóbrio, olhando para os lados feito tonto. No corpo, jurava carregar o cheiro da menina. Cheiro de flor, de vela derretida. Cheiro de cachoeira e de bicho que vive no mato. De madrugada, sonhava. Via-a em todo lugar e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum.

Na última noite, sentiu uma mão em seus ombros. Atirou-se sobre ela feito condenado. Beijava-a com sofreguidão, indagava sobre seu paradeiro. Estive por aí, simplificou. Voltaram ao cemitério, à mesma lápide, onde Josmedir novamente a possuiu. Amaram-se e ele se deixou levar por uma onda repentina. Como se acalentado em berço, dormiu.

Acordou na porrada, já com o dia claro e um cheiro nauseabundo tomando conta. Estava deitado no chão, nu, sob botinadas dos polícias. Foi levantado pelos cabelos e, entre gritos e sopapos, viu alguém recolher um corpo acinzentado, sem cor de gente. A lápide estava violada. Em sua cabeceira, uma foto da lourinha, seguida pela data de falecimento ainda recente. Questão de semanas. Na delegacia, não conseguiu explicar algo que ele mesmo jamais entenderia. No dia seguinte, os jornais noticiaram a prisão do ‘Necrófilo do Embu’.

Por Guinea Pig


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Cabo de marfim

Parou com o cabrito no meio fio. Distância segura, faróis apagados. O tempo seco garantia boa visualização. Os malas faziam a correria sem preocupação. Tudo deles, por ali. A primeira fita foi com um casal. Entraram na casa, bateram no cara, folgaram e mamaram nos peitos da patroa. Vazaram levando dois contos. Na rua, um nóia colou. O alemãozinho saiu para buscar a parada. Do carro, acompanhou-o com os olhos até dobrar a esquina. O negrão ficou. Ele e o nóia trocaram uma ideia. O alemão voltou, entregou, pegou a grana.  Saíram dali, para dar um tempo e desbaratinar. 

O segundo BO foi com família. Enfiaram o canhão na cara do moleque, tocaram o terror no pai, estapearam a mãe. Levaram roupas e uma merreca em grana. Dois roubos de cara limpa. Um loirinho e um moreno, mais para negrão. A arma em ambas as ocorrências: um 38 com cabo de marfim.

Voltaram. Fumaram um cigarro e esperaram. Ligeiros, faziam as fitas longe dali para não irritar o patrão. Tráfico e 157. Uma vela para Deus e outra para o diabo. Uma moto colou. Dessa vez o alemão ficou e o outro saiu.

Chegar nos malas foi fácil. Charlie levanta o serviço, Mike dá o bote. Em tese. Mas ele ia reclamar? Também tinha seus negócios lá dentro. Legítima defesa, resistência à prisão. "O suspeito abriu fogo"; “As câmeras de vigilância encontravam-se desativadas”; “A testemunha não foi localizada”.

Semana anterior. Chácara de bacana. Serviço dado: quinze paus guardados no cofre. Joias, relógios, celulares, eletrônicos e o caralho a quatro. Os malas se animaram com o bar e chaparam. O alemão deu uma de Jack e comeu a dona. O negrão fez o marido ver. Na cabeça do sujeito, um 38 reluzente com o cabo em marfim. Depois enfiaram o casal no carro, levaram para uma quebrada. Com os dois amarrados, soltaram num barranco. A mulher se machucou. O cara virou um vegetal. O recado chegou até ele para que fosse tomada uma atitude. Os Charlies lavavam as mãos.

Deu a partida e saiu devagar, sem pressa. Contornou mais adiante, acessou a outra mão. Chegou perto e acelerou. Pegou os malas de surpresa. O para-choque esmigalhou ossos, rasgou fundo. Perdeu um dos faróis. Uma cabeça trincou o para-brisa. Alguma coisa rolou por cima do carro. Desceu de Glock na mão. Duas balas para cada um. Virou o corpo do alemãozinho. A arma era bonita. O acabamento em marfim, delicado. Coisa de artista. Foi embora, levando o souvenir.

Por: Guinea Pig

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Mulher de Boate

Toda noite era a mesma coisa. Escolhia-a, não sem calculada demora. No balcão, uma cerveja. Depois, fazia sinal para que se aproximasse e pagava a dose. Terminavam num quarto triste, de paredes beges e lençóis curtidos. Tomava-a pela frente, por trás, lambuzava-a a boca. Perdiam-se por infinitos caminhos até a batida na porta. De volta ao salão tomava a segunda cerveja, pagava outra dose a preço inflacionado. Ia embora cedo, com a certeza de que voltaria na noite seguinte.

Carinhoso, vez ou outra entregava presentes. Perfumes, chocolates, pelúcias. Coisas de puta. De certa feita bebeu demais e propôs: “Pega tuas coisas, vem viver comigo”. Ela calou, depois sorriu e o engoliu por inteiro. Deixou que terminasse dentro dela.

Na noite seguinte não a encontrou na boate. No terceiro dia de sumiço, continuou a fazer perguntas. As respostas limitavam-se ao silêncio e expressões de pesar. Domingo à tarde foi abordado por dois sujeitos num Santana preto. Levaram-no para lugar incerto, onde foi surrado e currado. A menina era gaveta de um Papa Charlie da 17ª. Se quisesse ficar com a putinha, avisaram, teria de pagar. Deram o preço enquanto mijavam em cima dele. Acordou em casa, costurado, enfaixado, queimando em febre. Ela estava lá, de mala e cuia.  

Sedado e imobilizado, jamais percebeu o movimento de homens que eram atendidos no quarto ao lado. Quando finalmente se recuperou, a dívida com o Charlie estava quitada.

Por: Voltaire de Abreu



terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Vai e vem - O crime que compensa

Amigo do rei, amigo da fábrica,
Em Pasárgada eu sou o ladrão.
A mando do rei, a mando da fábrica,
Eu assolo aquela nação.

Eu roubo tudo de seu quinhão,
As vistas do rei, as vistas da fábrica.
Bem longe do rei, bem longe da fábrica,
Fujo, vendo tudo no sertão.

Perseguido do rei, perseguido da fábrica,
Eu me finjo de homem cão.
Sou muito útil a situação,
Situação do rei, situação da fábrica.

Se roubo do pobre, nobre cidadão,
Que vota no rei, que volta da fábrica.
Ele compra de novo à prestação,
Na loja do rei, direto da fábrica.

Sou ferramenta de argumentação,
Campanha do rei, paga pela fábrica.
Mandato do rei, lucros da fábrica,
Mesmo o crime tem lá sua função.

Por Coronel Malaquias