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quarta-feira, 23 de março de 2011

Em nome do cão



Dobrou a rua Ferra Brás com pressa e quase trombou num cramunhão qualquer, que pedia esmolas por ali. Xingou, pois tinha fome. Quando isso acontecia, virava um coisa-ruim, um tinhoso de mal educado. Para a sorte, ou azar, um rabo de seta indicava: restaurante à esquerda. Entrou e pediu comida, Filé ao molho madeira com arroz. Para beber, vinho Capa Verde. O prato estava sem tempero. Pediu pimenta e recebeu um frasco de Pimenta Capeta, “Assim está melhor”, ponderou. Na hora de pagar, ouviu uma gracinha do balconista. “Pimenta boa, né doto? O sinhô tá até vermeio”. Não respondeu. Pagou e foi embora. No caminho, desviou de um cão. “Passa, diacho!”. Na praça, perto do hotel, viu uma multidão a prestar atenção em um pastor negro. Canhoto, o homem pregava e levantava a bíblia em sua mão preta e esquerda. Calado, tirou sarro dos fiéis e invejou a audácia daquele velho canhestro.
No quarto do Hotel Azarape, ela o esperava. “Você demorou...”, reclamou, enquanto arrastava-o para a cama. “Tive coisas para resolver”, resumiu, enquanto resistia aos apelos daquela serpente. “Agora não posso”, decretou. Ela bufou e foi até a vitrola escolher uma música. Ele não a queria emburrada. “Eu podia ter sido um demônio da garoa, sabia?”. Ela ficou quieta. Ele insistiu. “Eu conhecia todos eles. Gostava de cantar. Faltou só gravar uma demo”. Ela sorriu. E o beijou, também. Caíram na cama, vestidos. “Você me traz um presente?”, ela pediu. “Eu te trago um casaco, daqueles finos”. Ela não acreditava. “Duvido, todo mundo sabe que você é o pai da mentira”  Ele levantou e acendeu um cigarro. Reparou que aquele quarto estava cheio de mosquitos. “Também sou o Senhor das moscas”, brincou. “Mas é sério. Entrei uma loja hoje e a vendedora me mostrou sete casacos diferentes. Sete peles. Nenhuma delas me parecia ficar bem em você”. Ela ficou quieta, pensativa. Fez biquinho. “Meu marido começa a desconfiar de nós”. Ele riu. “Já te falei para largar aquele chifrudo”. Ela levantou. “Para você é fácil falar. Você é homem. Largo ele, depois você me abandona e eu é que tomo no danado”. Ele a advertiu, já de saída para a rua. “Olhe a boca e vá tomar um banho, quando eu voltar não quero ver esse pé preto”. Ela ficou constrangida, mas correu lavar os pés.
De volta à rua, lembrou que o combinado era o seguinte: Zé Cabrunco e Tranca Rua esperariam por ele em frente a uma encruzilhada onde pastava um cavalo de casco partido. Era perto dali. Quando chegou, viu que os dois já tinham bebido o diabo. Engraçavam-se com duas pombas-giras com ares de sifilíticas. Tende piedade dos lazarentos, pensou. Zé Cabrunco era o pior. Chamava pé-de-cabra de pé-de-bode e assim ia. Porém, quando o viram, ficaram sérios novamente. Foram para fora do bar e, em silêncio, andaram até a sétima encruzilhada. Ali, sob a luz da lua cheia, foram apresentados ao contrato. Assinaram com sangue fresco e foram sacudidos por uma brisa gélida, que trespassou seus corpos feito lâmina. Um segundo depois, ele já não estava mais ali. Ficaram apenas os dois, sozinhos, a vislumbrar o futuro de glórias e riqueza que estava por vir.
Por: Voltaire de Abreu

2 comentários:

  1. Quantas vezes o coisa-ruim é citado nessa emocionante história?

    Mande seu palpite e concorra a um Vale Acuputura!!!
    Envie a resposta para: corrosivocoletivo@hotmail.com

    Boa sorte!
    Corrosivo Coletivo

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