Páginas

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Praga de Mãe


A velha insistiu. Queria por que queria passar um cafezinho. Está fresquinho, garantia, no frenesi atarantado dos que recebem visitas inesperadas. Ele repetiu que não era preciso se preocupar e, com modos suaves, conduziu-a até a mesa. Sentaram-se. Pela janela, via-se o breu da madrugada e a mulher ponderou que ainda faltava um bocado para os primeiros ônibus começarem a apanhar os peões. Apertou os olhos para enxergá-lo melhor naquela luz fraca, ainda sem saber se sonhava ou não. Ele arreganhou os dentes em sorriso. Bonito. Moreno, de idade indefinida, enfiado em um terno escuro. Elegante.
- Vim aqui para falarmos sobre sua filha – anunciou, manso, com a mão esquerda – imensa – a pousar sobre a da velha. O rosto da mulher contraiu-se numa máscara de desgosto.
- Foi para isso que me chamou, não? – Ele continuava a sorrir, confortador.
Então, ela compreendeu. Deixou escapar um sorriso trêmulo. É ele, pensou, com um aperto no coração.
- Nossa...- resmungou a velha – não esperava que você fosse aparecer por aqui, assim, em pessoa. Ainda mais a essa hora...
-  Pois é, aqui estou eu – respondeu o canhoto -, agora ande, conte-me tudo.

A menina morava sozinha com a mãe, que lavava, passava, cozinhava e fazia o diabo para fora, na sede de garantir a sobrevivência. Insistiu para que estudasse e vigiou-a diuturnamente, ciosa de suas virtudes e temerosa das más companhias. Eram elas contra a miséria diária. Quando Gracinha finalmente formou-se secretária, a velha perigou não resistir à emoção e foi internada com a pressão nas alturas. E tão logo concluiu os estudos, a garota arrumou serviço em uma empresa grande. Pegava o ônibus cedinho, antes de o sol nascer, e voltava para a casa já com a noite alta. A mãe insistia para que arranjasse morada mais próxima ao trabalho, já que, àquela altura, era mulher formada. Mas Gracinha não aceitava ir sem a mãe. Espera só, prometia, vou ganhar dinheiro para que a gente possa se mudar para um apartamento no centro, nós duas. Não houve tempo. As tão bem guardadas formas da menina despertaram o apetite do presidente da empresa. Um homem influente, de poderes quase ilimitados, e que em sua sala tomou Gracinha à força. Primeiro pela frente, depois por trás. Logo ela, que jamais conhecera o carinho – tampouco a brutalidade – de um homem. Num estado de miséria, conseguiu chegar a casa e lá se entrevou.
Parou de comer e de se lavar. Não saía do quarto por um nada. Duas noites antes de dar fim à vida com um copo de veneno, confidenciou à mãe o infortúnio. Imersa em uma raiva muda, ainda que longe de resignada, a velha enterrou a única filha. Em nenhum momento passou-lhe à cabeça ir às autoridades, pois sabia por demais que gente pobre nunca tem razão neste país. Perigava ela ser presa.            

- E, desde então, a senhora procura por mim, de encruzilhada em encruzilhada, a cada lua cheia, entre as sextas-feiras e os dias santos – resumiu o cavalheiro. – Afinal, mãe, o que deseja?
Calada, a velha olhou para o chão, em um pranto seco, pois já não havia mais lágrimas a serem derrubadas por Gracinha. O canhoto tornou a acariciar aquelas mãos de peles finas e manchadas.

- Justiça – disse a mulher, numa voz rouca.
- Mas, sabe o preço de minha justiça? Sabe que ela tem dois pesos e duas medidas? – Indagou o homem. A mulher colocou-se em pé. Em um armário, apanhou a lata metálica, de onde retirou um maço de dinheiro. Suas economias. Colocou na mesa as notas enroladas em elástico. Ele não precisou contá-las para saber que havia ali dois mil e quinhentos reais.  Todas as notas eram de cem.
- Eu não me interesso por dinheiro e sabe bem que meu preço é outro. Mas, vou aceitar de bom grado a oferta. – Anunciou e, canhestro, apanhou o bolo de notas. O valor seria útil a outra pendência. À frente dele, a mulher sorriu. Ele retribuiu e umedeceu os lábios em um gesto rápido, quase reptiliano, que deixou à mostra a ponta de uma língua escura. Os olhos do cavalheiro tornaram-se opacos no momento em que ele inclinou o corpo para frente e sussurrou:

- Então, mãe, o que deseja em sua vingança? 
- Não quero a benção da morte – frisou -, que acabou por libertar minha filha de todo o sofrimento. Quero é que a vida daquele cão escureça para sempre.
- E como quer que isso aconteça?
- A ele, desejo a dor da loucura.

Assentiu.Poucas coisas o satisfaziam mais do que a ira de uma mãe. Quando enfurecidas, seus anseios noturnos reverberam por recônditos, becos, cachoeiras e encruzilhadas. Ai dos que por elas eram amaldiçoados. A velha o fez recordar de outros tempos e outras terras - Histórias de um beijo na face seguido pela devolução de uma filha desonrada. Palavras envenenadas pela madrugada e que evocavam o anúncio da morte certa. Aquela mãe era uma santa. 
Uma santa, pensou. Depois riu, pois já sabia como atenderia ao pedido da velha. Com a gargalhada, veio uma rajada de vento que abriu a janela do casebre em um golpe só. A mulher correu para acudir e, com algum custo, conseguiu passar a tranca novamente. Quando tornou a se virar, pronta para dizer alguma coisa ao visitante, já não havia mais ninguém ali. 

Por: Guinea Pig

5 comentários: